quinta-feira, 9 de junho de 2011


Diz o senso comum que cantar é, assim como chorar e rir, manifestação universal. Isola-se no entanto o «dançar», já que, apesar de inesgotável campo de estudos, quase sempre depende do estímulo da canção/música/ritmo, digo eu. Daí ter eleito apenas a canção pelo ângulo da sociocultura Ovimbundu.

Recorrerei a memórias de uma infância na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, que abandonei aos sete anos devido à guerra civil. Permitam-me vestir de aura positiva a máxima que diz que “se pode tirar a pessoa do mato, e não o mato da pessoa”, na medida em que o conceito “mato” representa, no falar das nossas gentes, o meio rural e toda a sua mística – não necessariamente a selvajaria.

No “mato” ou kimbo, cantava-se em vários contextos. No político, ecos de resistência pró governo (partido único) e exército contra o inimigo (guerrilha da Unita) e apoiantes internacionais; no social, destaco a pedra onde mulheres transformam milho em fuba, ajustando golpes com “upi” (piso) ao compasso de canções, quantas vezes a satirizar ou a condenar hábitos e acções (do indivíduo ao colectivo) com base no sistema de valores do meio; mas é na oralidade (batucadas, serão no ojango ou à volta da fogueira) que reside o motivo desta divagação (seria exercício inútil definir oralidade).

Os contos só podiam ser partilhados de noite, nunca à luz do dia. Cresceriam chifres na cabeça de quem desobedecesse o mito (seria para desencorajar a mangonha?). Alguns deles, hoje, eu os assemelharia a filmes de terror. Houve também românticos. Não raras vezes, pedíamos que nos repetissem essa ou aquela estória durante anos. Não vinham a seco, carregavam sempre uma canção ou mais que isso – já não sei se não era a canção que as carregava.

O verso não é preocupação. Alguns nomes da música transportaram para discos a tradição, quer no conteúdo, quer na forma. É certo que a linha é ténue entre intervenção e tradição oral não engajada. Está aqui em causa o estilo corrido de narrar. Falemos a seguir de quatro nomes do planalto central (Huambo e Bié).

Zé Katchiungo, que se notabilizou pela música de resistência na Jamba (bastião de Savimbi), é exímio contador de estórias e provérbios em músicas bem dançantes, como são exemplo  “ucinje uti wovava”, “ocikoko” e “osoma yoneñe”. Venâncio Viñi-Viñi (“Etc., Etc.,” em Umbundu) narra peripécias da sua vivência de contratado nas minas de ouro de Transvaal, à época colonial, bem como a humilhação que é a guerra: Trititi, não chores mais/ porque o papá/ não tem pão/ para te dar/ (…) hukalile vali, Ota, ndakava [não chores mais, querido, estou cansado], sendo que “Trititi” serve de nome de criança-personagem, onomatopeia do ritmo de balas. Bessa Teixeira é mais conhecido pela reedição de cantares populares do que por temas originais (leia origem do tema “Sulunla”). Justino Handanga é outra pedra-angular.

Em Benguela, emergiu o jovem Sukumunla, de uma geração posterior à de José Viola, César Cangue e Joaquim Viola, estes ligados à Rádio Nacional de Angola. “A monlange, kulilelile, nyoho walinga (…) omangu yovowotele, kakuli u katumãla ko” [meu filho, não chores, tua mãe tornou-se (…) cadeira de hotel, não há quem lá não sente”], (Cangue). “Ame ame Ciyunge/ vatucita kavali/ Ciyunge/ vatutuma olongombe/ ove ekumbi liainda”], (Joaquim Viola) - um lamento por exploração doméstica para pastar bois. Temos ainda Fedy, autor do sucesso “kalupeteka”.

Vozes femininas são esporádicas. Surgiu Mila Melo com rapsódia nos anos 90. Mais recentemente temos Bela Chicola e Pérola. Esta última deu nova e bela roupagem a "omboio" do cancioneiro Umbundu, tema antes reeditado pelo Duo Canhoto. Patrícia Faria recuperou “catarina”, do trecho “kakuelele ongongo kayilete” [quem não casou não sabe o que é sofrer].

Há entretanto uma canção que desafia o padrão, também absorvida em pequeno. Ela desperta curiosidade pela preocupação que parece ter havido na concepção quanto ao ritmo e métrica. Cantada é ainda melhor, mas fiquemos pelo texto apenas, o único meio possível aqui no Blog:

Ondumbu wéh [o leão]
Yalia, yalia yamanla [devorou, devorou tudo e todos]
Kulo kayipitinla [aqui porém não chega]
Ame wéh [eu]
Ndaimba odunge ocilavi [confio o material com que fiz o cerco]
Ondumbu yipita pi? [onde passará o leão?]

Termino, portanto, com duas perguntas de retórica: terá havido influência de algum “missionário” ocidental para a estética da rima? Quando surgiu a fábula desta canção atribuída à lebre?

Um abraço
Gociante Patissa, Aeroporto da Catumbela, 8 Junho 2011

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